Memento Mori
Alexandra Ungern, Carolina Caliento, Claudia Tavares, Christiana Moraes, Heloisa Lodder, Iara Freiberg e Nilson Sato
Curadoria
Claudinei Roberto da Silva
Abertura: online 23/04/2021 | presencial 24/04/2021
Período Expositivo: de 24/04 à 04/07/2021
“Todas as coisas são difíceis; o homem não as pode explicar com palavras. O olho não se farta de ver, nem o ouvido se enche de escutar.” Eclesiastes.
Existe entre nós, um mal estar evidenciado pela disseminação implacável de um vírus letal, cujas vítimas e seus familiares prestamos reverência. Sinal incontestável da decadência e talvez da agonia de uma civilização que ainda assim se pretende hegemônica. Recrudesce a violência dessa civilização contra os corpos que divergem da sua suposta superioridade. A necropolítica desse modo, pauta a agendas ideológicas daqueles que minando a democracia, estão instalados em seus palácios. A gestão irresponsável, inescrupulosa dos finitos recursos naturais do planeta está em pleno curso e como consequência a própria existência da espécie humana está colocada no horizonte das possibilidades. O “ceticismo humanista” de alguns artistas anteviu e elaborou nas suas obras a situação que vivenciamos. Eles previram a nossa incapacidade no socorro, daquela considerável parcela da humanidade tornada miserável pela lógica avara de alguns. Previram a inaptidão para comunicarmo-nos uns com os outros, a incompetência no cuidado e na gerência dos afetos. Tudo esteve na cogitação desses artistas que através de suas poéticas construíram narrativas que sugerem a salvação pelo silêncio que não se traduz em contemplação passiva da beleza, mas pelo contrário, nos impele a ação. Uma ação que começa pela revolução do sujeito, que confrontado com a obra, está diante de um espelho e a imagem refletida nele é que exigem respostas às perguntas que a obra formula. Assim temos os trabalhos de Alexandra Ungern, Carolina Caliento,Claudia Tavares, Christiana Moraes, Heloisa Lodder, Iara Freiberg e Nilson Sato que articulados pela exposição, criam uma potente narrativa que não apenas anunciam um estado de coisas já denunciado aqui, mas o fazem de maneira a realçar diferentes estratégias e escolhas estéticas.
Alexandra Ungern, por exemplo, faz a crônica do efêmero em naturezas mortas que ela “congela” em fotografias e objetos que tem uma dúbia natureza, já que se instalam também como objetos que mensuram o irrefreável passar do tempo. Em acordo com essa sensibilidade está o trabalho de Heloisa Lodder, artista que investiga a realidade através de uma arqueologia de estruturas arquitetônicas capturadas também a partir da sua sensibilidade treinada de designer. Ora, essa sensibilidade não a impede de certa “rusticidade” no trato com a matéria que analisa. Lodder expõe a matéria de modo a evidenciar seus processos que carregam algo de performático e efêmero. Aliás, é performático também o essencial desenho de Christiana Moraes. Desenho que atravessa todo o pensamento e ações da artista. Desenho implacavelmente expressionista que discorre sobre disfuncionalidades e não raras aberrações e monstruosidades que, ao fundo e ao cabo, são retratos realistas de um momento doloroso de nossa sofrida humanidade. Não deixa de ser interessante o interesse que ela demonstra pelo gênero da natureza morta que ela, tanto quanto Ungern, atualizam ao exercitá-lo.
Carolina Caliento constrói um universo distópico onde as paisagens anunciam uma tragédia. Há algo de grandioso e operístico no seu trabalho que anuncia um armagedom. Um apocalipse de devastação e solidão que, no entanto, nos seduz e cativa. A artista articula sua poética partindo da fotografia que ela manipula, da pintura e desenho. São imagens poderosas, crônicas de tragédias anunciadas que são organizadas em obras de dimensões variadas, mas o sentido ou a evocação da monumentalidade está quase sempre presente. É interessante observar como essa ideia do monumental também se exerce no instigante trabalho de Iara Freiberg. As intervenções que a artista realiza no ambiente urbano, em arquiteturas que ela revela ao mesmo tempo em que as questiona. Freiberg intervém com incisão e inteligência em espaços que a partir daí ganham outros interesses e até dimensões. Um olhar talvez descuidado pudesse sugerir que o que seu trabalho busca alcançar, são ilusões de ótica, conseguidas, aliás, a custo de cálculos sofisticados. Mas se isso é verdade, é também verdade que através desses “jogos” o que fica evidenciado, são as potencialidades do espaço que a artista investiga. Há um maravilhamento diante de suas proposições, mesmo que no caso em tela, mais inquiete e às vezes amedronte do que apazigue nossos sentidos. Apaziguar os sentidos não está na cogitação desse elenco de artistas, mesmo que essa sugestão possa ser percebida na obra do virtuose Nilson Sato. Cabe destacar que sua virtuosidade de pintor e desenhista existe a favor de um projeto poético nunca deixando de estar subalterno a esse projeto. Sato é um homem lacônico, atento ao essencial e este predicado está também presente na sua obra onde espaços não preenchidos, organizam composição de enorme densidade poética. É próprio das obras presentes na mostra, uma carga política que não se apresenta de maneira evidente. Contudo, os retratos de Marielle Franco e Carlos Marighela que o artista apresenta poderiam contestar a afirmação. Cabe no entanto considerar as utopias não realizadas expressa pela trajetória desses dois militantes e considerando colocá-las em perspectiva com as demais narrativas expressas nas obras dos demais artistas. A exposição, ao colocar as obras em relação umas com as outras, logra construir uma narrativa que se quer mais complexa do que aquela que surge a partir de uma obra individual. É assim que utopias e distopias se atravessam para lembrar-nos de que vamos morrer e que por isso é preciso aproveitar o dia. Isso também nos parece sugerir a artista Claudia Tavares cujo potente trabalho é composto por investigações de várias mídias notadamente da fotografia que ela articula de modo a esgarçar os limites da própria linguagem. Tavares devota especial atenção ao meio ambiente. A ecologia decorre daí algumas propostas sutilmente contundentes, como nas magníficamente realizadas fotografias em que a imagem da vegetação emerge dificultosamente de um fundo de negrume absoluto e aveludado. Sua série de desenhos laboriosamente realizados também trazem essa ambiguidade do delicado e do “pesado”, dualidade que torna mais complexa a poética e que não tolda o sentido da mesma.
Memento mori é a exposição inaugural do novo espaço do Alê Espaço de Arte. Projeto capitaneado pela artista Alexandra Ungern que vem cumprindo um importante papel na cidade de São Paulo. A julgar pelo empenho das administradoras do espaço durante os anos de trabalho já computados, podemos deduzir que esse fundamental trabalho de promoção da arte contemporânea e educação que o Ateliê Alê desenvolve, devem garantir novas e importantes contribuições para o universo da cultura na cidade e no país.
Claudinei Roberto da Silva
curador