Escalas em uma Paisagem Humana
Curadoria: Paulo Gallina
Abertura: 21/10 das 16h às 20h
Período expositivo: 24/10 à 11/11/2023
“Enquanto gênero de imagens, a paisagem trata do espaço. É uma representação de tudo o que o olho toca para conformar um entendimento sobre a continuidade entre o eu que olha e o horizonte, sempre fixo e sempre cambiante [afinal, a cada passo dado pelo observador, o horizonte também caminha um passo mais para adiante]. A questão então colocada pelas Escalas humanas em uma paisagem é como cada sujeito se entende entre o entorno, sempre em contato com os sujeitos, e os indivíduos que escolhemos ser ou nos tornar.
Assim, cada artista participante desta mostra medita sobre como os sujeitos descalçam-se do entorno e reafirmam-se tanto na sua singularidade, quanto na comunidade em que se inserem. Enquanto Alexandra Ungern remonta as histórias de sua família entre desenhos e palavras de ordem, um procedimento individual e individualizado; Claudio Souza aponta para a importância dos percursos – não raro invisíveis por repetirem-se com tamanha frequência no cotidiano – como espaço de reflexão, meditação e escolhas. Se Dolly Michailovska aborda o espaço como pura potência onde o projeto e a concretude de suas colagens se encontram, Jõji Ikeda nega qualquer qualidade representativa – mesmo que abstrata – em suas pinturas para apresentar este vazio como potência para que tudo se dê. E assim, os quatro artistas pedem aos visitantes para revisarem as fundações de suas certezas entre o virtual que os monólogos mentais podem produzir e a dura realidade material que o mundo pode refutar.
Juliana Berto por sua vez, com seus retratos auto ficcionais, remonta às biografias de tantas mulheres em busca de um conforto e acolhimento em uma sociedade marcada por regras e condutas. Poder-se-ia argumentar que esta qualidade de afeto promotora de autocuidado cabe à todos os seres humanos, mas isso seria uma extrapolação é um exagero, considerando que é sobre os corpos femininos que regras perversas pautadas pela cultura de consumo, em especial da moda, recai com maior força. Então, [caro leitor] por favor não aliene-se desta demanda de solidariedade e sinta-se à vontade para colocar-se ali também junto dessas dúvidas em relação ao autocuidado tão incentivado em propagandas e perversamente utilizado pela publicidade contemporânea. Neste mesmo sentido, podemos olhar o trabalho de Monica Marques, artista paulista hoje radicada no interior do estado, que numa espécie de caderno diário, relata percepções sobre como é ser uma mulher na metrópole desvairada que é São Paulo na última década. Seus desenhos são reflexos de um conjunto de sentimentos, bons e ruins, que povoam e constroem a percepção de si em um eu que não á apenas a artistas, sendo todos nós.
O trabalho de Liliana Buzolin parece, com uma pintura geométrica, refutar a máxima concreta que nos foi legada aos dias de hoje: toda forma tem uma contraparte matemática. Com pinturas apoiadas em teorias sensíveis sobre a relação entre o que se é incapaz de enunciar e apontar, Liliana parece lembrar à uma sociedade cujo modus operandi é a prática, e o utilitarismo, que a matemática não é singularmente o jogo da lógica, ela é, em verdade, a aplicação lógica onde a lógica é devida. Assim, o que seriam sobreposições cromáticas em veladuras tão finas que parecem contaminar as cores mais à vista com as colorações sobrepostas são, de fato, falseamentos que insinuam veladuras ao apresentarem combinações cromáticas trazidas da paleta [é preciso lembrar, caro leitor, que a paleta para a pintora é a superfície onde ela mistura as tintas antes de aplicá-las sobre a tela] da artista. Conquanto as pinturas de Rosana Pagura relembram aos visitantes que as pessoas cheiram, assim como as pinturas também o fazem. Assim, a pintora traz a esta paisagem tão difusa a discussão sobre quais cheiros se quer para si e quais cheiros habitam o entorno. Os vidros de perfume são retratados, nas mãos de Rosana, como personagens em zoom. Destacados em um espaço cujo único índice é o fundo monocromático que dá o tom das obras apresentadas.
Por fim, o trabalho de Rosa Grizzo é a um só tempo uma apropriação, uma alteração, uma denúncia e uma crítica ao conjunto de preconceitos destilados de maneira [já não mais tão] sutil em uma espécie de poesia do início do século XX que é também um manual de costumes. Essas palavras escritas por um homem, com alguma vontade de se ser poético, são um manual da dominação masculina em relação aos corpos femininos que recusam-se a dobrar-se a vontade e aos certos e errados de um modelo de sociedade misógino que tenta ainda preservar alguma qualidade de afeto em relação ao ser humano feminino. O procedimento de Rosa é simples: reproduz-se o texto tal como ele foi encontrado e intervém nele com um carimbo vermelho como um batom. Na oposição entre o dizer masculino das primeiras décadas do século XX e a resposta feminina das primeiras décadas do século XXI, há uma constatação de certo conservadorismo legado ao presente, assim como há a marcação do quão frágil pode ser as conquistas de lutas femininas nesses cem anos que separam o autor da artista.
É com essas operações de mergulho na subjetividade das pesquisas propostas pelos artistas e de diálogo com a subjetividade dos visitantes que Escalas humanas em uma paisagem procura aprofundar um certo entendimento do que é e do que significa ser humano aqui, agora. Nestes dias conturbados e cheios de potência que ainda estão para ser fundados depois de 2023.”
Texto por Paulo Gallina