Um Órgão Indômito: como um labirinto de afetos

Um Órgão Indômito: como um labirinto de afetos
setembro 20, 2024 zweiarts

Um Órgão Indômito:
como um labirinto de afetos

Período expositivo: 14/09 à 05/10/2024

Um Órgão Indômito:
como um labirinto de afetos

“(…) as realidades mais óbvias, onipresentes e fundamentais são, com frequência, as mais difíceis de ver e conversar a respeito”. Isto é água. David Foster Wallace

Pode-se assumir, com algum grau de justiça, que o órgão ao qual o título desta exposição se refere é o coração humano. Literal e figurativamente, essa parte pulsante do corpo é incontrolável. Assim como a maioria, senão todas, as partes vitais, o sujeito não precisa concentrar-se para que seu coração bombeie oxigênio, através do sangue. Porém, se estamos falando em sentido figurado — que é como a poesia costuma tratar —, o coração humano é uma representação da sensibilidade humana, presa dentro da pele. O indômito, aqui, portanto, não é o coração, mas sim a mente.

Afinal, pensar é natural para a humanidade [como nós a conhecemos] e há uma parte do pensar que não obedece à lógica, à ética ou aos acordos que, direta ou internamente, os sujeitos aderem a. A mente recebe o mundo e reage a ele com impulso voraz, elaborando um universo sensível sobre o qual mal se pode falar, principalmente porque há pouco vocabulário para isso (i.e., falar, verbalizar, enunciar). Assim, esta exposição explora de maneira oblíqua uma expressão da sensibilidade humana que pode ser aludida, mas não atacada diretamente.

Obras como as de Alexandra Ungern, que comentam a memória e os afetos — da artista e de terceiros, sem a clareza de quem é quem no reino da Dinamarca¹ —, eleitos e agremiados em delicadas porcelanas inteiras e quebradas. As de Flávia Amorim, que fragmenta [recorta] os suportes de suas peças ou borda suas cianotipias, lembram os visitantes de que memórias — os mais famosos habitantes cerebrais nos indivíduos — não são forjadas por fatos, mas por sentimentos [não raro inominados, mas sempre intensos em alguma medida], antes de serem guardadas em corações figurados que moram no peito de quem as protege.

As explorações pictóricas de Juliana Berto e Justina D’Agostino não estão distantes desse argumento. Desta vez, porém, algo distinto chama a atenção na pintura. Conquanto a senhora D’Agostino elabora fantasias a partir de imagens registradas fotograficamente, fabulando sobre o recorte do mundo [implicado na fotografia] e restaurando a humanidade dos cenários urbanos — seja trazendo pessoas para as pinturas de fotografias desabitadas, seja reforçando a escala humana nos cenários onde não se vê vivalma. Juliana Berto utiliza o autorretrato para nos falar da coragem necessária para um sujeito seguir adiante, a despeito dos ambientes, por vezes sinistros que ela produz. Veja, essas pinturas [e gravuras] criam ambientes habitados tanto por suas personagens [autorretratos, por vezes duplicados em uma mesma cena] quanto pela imaginação do observador. São duas faces de uma mesma moeda: o coração humano, em uma e outra elaboração da pintura, especula sobre a experiência onírica que se projeta a partir do mundo, para o bem e para o mal, e, a partir dessa projeção, inquirem o observador: quem é você afinal? Quais sonhos alimentam seus pesadelos? Quais medos [pesadelos] protegem os sonhos que você carrega em si? E eu, de minha parte, levando as perguntas ao seu limite, acabo por entender: que ambas as artistas acionam afetos ambíguos, misturados a memórias, para falar sobre um dado da intimidade que todos compartilhamos, mas sobre o qual ninguém realmente sabe falar a respeito.

Então, nos encontramos com as pinturas de Ana Paula Azevedo, que retratam um órgão não por sua idealização nos cadernos juvenis ou pela cultura pop. Esta artista retrata o coração, figuradamente tão caro à poesia [visual ou verbal], como fariam os manuais de biologia ou medicina: criando algumas adaptações com tinta e esmero para que não se possa esquecer que este órgão, com a mais potente musculatura do corpo, é também movido pelo clamor da fúria que pede para seguir adiante a despeito do que quer que seja. O caráter indômito aqui aparece na repetição, que tenta manipular a tinta e aceitá-la em sua limitação também.

Por fim, a obra de Dolly Michailovska, terna e calma como a própria artista, e um tanto mais lógica do que se costuma esperar de um órgão que simboliza a lida com os afetos humanos, esquadrinha, em obras do século XX, o mundo natural, representando folhas, por vezes secas e quebradiças, e, em obras mais recentes, o mundo dos projetos e planos, filhos do pensamento racional organizado, em sobreposições que dão corpo à sua colagem. A colagem de Dolly, que imediatamente parece referir-se ao universo da geometria analítica [ferramenta tão cara aos projetistas, arquitetos e engenheiros], revela, em suas camadas, um certo sentido de fragmentação e reunião.

E, assim, neste conjunto, a somatória das peças é uma produção que nos lembra de que: se o mundo é duro e indiferente, eleger nossos afetos pode criar sentidos maiores – e mais amplos – para resguardar os sujeitos dessa dolorosa indiferença e seguir pulsando por caminhos que só serão trilhados por uma pessoa: você, o vivente.

por Paulo Gallina
07/09/2024