ZOOPOÉTICA por Peter Pál Pelbart

ZOOPOÉTICA por Peter Pál Pelbart
julho 5, 2016 zweiarts

ZOOPOÉTICA por Peter Pál Pelbart

O Deus e o Rato

Poucos autores mostraram com tamanha força o quanto a vizinhança com os bichos revela de nossa própria “animalidade abafada”. Em Clarice, é através do que temos em comum com eles (a morte? o medo? a dor?) que sentimos em nós a pulsação vital. “Às vezes me arrepio toda ao entrar em contato físico com bichos ou com a simples visão deles. Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis.”[1]

“ Pareço ter certo medo e horror daquele ser vivo que não é humano e que tem os nossos mesmos instintos, embora mais livres e mais indomáveis.”[1]”

E nos confundimos, já não sabemos quem é quem: “Sim, às vezes sinto o mudo grito ancestral dentro de mim quando estou com eles: parece que não sei mais quem é o animal, se eu ou o bicho.[2] E o que dizer quando se trata de um bicho morto? Há mais vida num cachorro morto que em toda a literatura, diz ela. Na Praia de Copacabana, admirada com um inédito sentimento de carinho pelo mundo, ao imaginar com ternura que este mundo poderia ser cria sua, ela conta. “E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.

Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato[3].

O Deus e o Rato fazem parte de um mesmo mundo, mas também a Morte e a Vida. Não porque sejam iguais, mas porque são indissociáveis, porque é preciso passar por um para sentir o outro, ou porque é no encontro entre eles que se descobre outra coisa, não propriamente uma comunhão, porém a intensidade da passagem, entre reinos, gêneros, estados, seres. Deleuze chamou a isso de devir: “A escrita é inseparável do devir: ao escrever, nos tornamos-mulher, nos tornamos-animal ou vegetal, nos tornamos-molécula, até um devir-imperceptível.” Não se trata de virar um animal ou imitá-lo, mas colocar-se numa zona de indiscernibilidade onde a fronteira se embaralha – nem humana, nem animal, nem vegetal, nem mineral, nem desumana: inumana. Para atingí-lo, é preciso estar do lado do informe, como dizia Gombrowicz, do inacabamento. As formas dadas, excessivamente definidas, esculpidas, apolíneas, não dão a ver precisamente o “monstro” que elas encobrem. O monstro só aparece, como o mostrou Aristóteles, quando na gestação a matéria não é suficientemente exposta à ação da forma – é a matéria não moldada que transborda, que excede. Por isso, diz José Gil, um monstro desvela o excesso de matéria, ele “é sempre um excesso de presença”, “obscenidade orgânica”. Pois é o interior visceral à flor da pele. “O que fascina é que esse interior ´se corporize’ e que não seja realmente um corpo – pois não tem alma. Ao mostrar o avesso da pele, é sua alma abortada que o monstro exibe: o seu corpo é o reverso de um corpo com alma, é um corpo que atacou a alma absorvendo-a numa parte corporal. Ao revelar o que deve permanecer oculto, o corpo monstruoso subverte a ordem mais sagrada das relações entre a alma e o corpo […] Que monstruosidade carrega o monstro teratológico com ele? A de uma alma feita carne, vísceras e órgãos”.[4] Não há mais separação entre alma e corpo, e assim, tampouco entre homem e bicho, vivo e morto, dentro efora.

A Matéria e o Chamado

Talvez é o que nos faz estremecer diante das esculturas que Renata Huber produziu ao longo dos últimos anos: bichos rastejantes, híbridos, ventosos, polifemos, casulos – seres incomuns, ora ainda embrionários, ora já natimortos, ora em estado de decomposição, ora “sobras” de estados primevos, ora ainda em estado de experimentação científica – cobaias acéfalas ou ocas, morcegos recompostos, seres viscosos – não há um deles que não cause arrepio, nojo ou horror. Se fossem apenas formas, mesmo disformes, talvez nos deixassem indiferentes. Mas curiosamente, como em Clarice, há fascínio e mesmo ternura, pois sua matéria é a lama vital. “O que faço com as mãos é servir de testemunho, escutar toda sorte de seres interrompidos cuja única sorte foi perder a cabeça”, diz com humor a escultora[5]. E assim, em meio à deformidade inumana, há sempre um detalhe proto-humano que nos laça a alma – por exemplo, uma patinha ternamente esticada. Como diz Deleuze: “A literatura começa com a morte do porco-espinho, segundo Lawrence, ou a morte da toupeira, segundo Kafka: “nossas pobres patinhas vermelhas estendidas num gesto de terna piedade”.”[6] Não é aí, diante de detalhe tão minúsculo, que toda nossa alma se contorce? Como se aqui coubesse a reflexão puríssima de Clarice:

“ “Nâo ter nascido bicho parece ser uma de minhas secretas nostalgias. Eles às vezes clamam do longe de muitas gerações e eu não posso responder senão ficando desassossegada. É o chamado.[7]””

Se a escultora precisa da matéria para responder ao chamado, não é porque não saiba escrever, mas porque a matéria a chama: “O que talvez somente fosse a nostalgia da matéria e o simples derrapar no que de longe se representa torna-se um amálgama de forças desconhecidas, um rápido aflorar de formas que pululam”. Sim, formas inacabadas, incompletas, disformes, por vezes fazendo escorrer do seu oco uma lava que parece vir de outras eras geológicas, e que deixa à vista precisamente a matéria viva rebelde, indomável, extrapolando o enquadre estreito do vivente bem-sucedido: “a matéria fala em nós, sempre novamente; de modo obscuro, esticando aqui e lá, entra em comunhão com as esferas diabólicas, levando-nos a questionar a englobante prisão onde passamos nossos dias tentando tudo apreender.”[8] Uma prisão de onde uma zoopoética nos permite escapar – fugir de si por dentro, vazando, escoando, deixar-se escapar antes de engessar-se – será isto possível? Uma das versões de um conto imaginado por Clarice refere-se à fórmula sugerida pela vizinha para matar baratas – farinha e açucar para atraí-las, e gesso para esturricá-las por dentro. Preparado o veneno, a narradora desperta em meio à escuridão da madrugada e distigue a seus pés “sombras e brancuras: dezenas de estátuas se espalham rígidas. As baratas que haviam endurecido de dentro para fora. Algumas de barriga para cima. Outras no meio de um gesto que não se completaria jamais. Na boca de umas um pouco de comida branca. Sou a primeira testemunha do alvorecer em Pompéia. Sei como foi esta última noite, sei da orgia no escuro. Em algumas o gesso terá endurecido tão lentamente como num processo vital, e elas, com movimentos cada vez mais penosos, terão sofregamente intensificado as alegrias da noite, tentando fugir de dentro de si mesmas. Até que de pedra se tornam, em espanto de inocência, e com tal, tal olhar de censura magoada. Outras – subitamente assaltadas pelo próprio âmago, sem nem sequer ter tido a intuição de um molde interno que se petrificava ! – essas de súbito se cristalizam, assim como a palavra é cortada da boca: eu te…”[9] O biscuit utilizado pela escultora não é um gesso mortífero – parece mais tenro, poroso, quase diáfano.

A Biopolítica e o Quase-ser

Uma das séries chama-se justamente Quase. São quase-seres, ou seres quase-possíveis, ou seres impossíveis, ou seres-que-não-existem-direito, ou apenas imagináveis, ou então inimagináveis. E no entanto estão aí, não apenas na exposição, numa galeria, no circuito da arte, na longa história dos monstros, nos bestiários literários, mas igualmente nos laboratórios científicos atuais, na experimentação biotecnológica de hoje, na produção do vivo que o pensamento contemporâneo não pode ignorar, sob pena de se ver arrastado numa aventura pós-humana sem volta. A cobaia oca e acéfala esticada pelas quatro pontas é uma imagem apenas, entre várias outras, de uma aposta onde as potências demiúrgicas do capitalismo e da tecnociência, aliados, experimentam, não mais com perplexidade filosófica, como exclamaria Espinosa, “não sabemos ainda o que pode um corpo”, mas com onipotência divina “não sabemos ainda o que se pode fazer com um corpo”, ou mais ainda, quais novos corpos se pode fabricar através da manipulação genética, que novas combinações, que misturas, que hibridismos se tem a capacidade de programar, como em Blade Runner. A experimentação em curso borrou a fronteira sempre tão categórica que a metafísica estabeleceu entre o homem e o animal, exercitando uma biopolítica pela qual se redesenham as relações entre o poder e a vida.

Como diz Agamben, desde a Antiguidade assistimos a uma exlusão do não-homem no homem, paralelamente a uma antropomorfização do animal[10]. O homem encontra em si, e isola dentro de si, um animal que ele qualifica de não-homem, numa decisão que é ao mesmo tempo metafísica e técnica, e que implica sempre e necessariamente uma zona de fronteira, de indistinção. Com a biopolítica, que produz vida nua, a “máquina antropológica” que separava o animal no homem, no entanto, tornou-se inoperante. Não se trata, agora, de buscar uma nova articulação entre eles, porém antes de mostrar o vazio central, o hiato que separa, no homem, o homem do animal, e arriscar-se nesse vazio, numa suspensão tanto do homem como do animal, reivindicando-se um novo estatuto para essa vida, ainda que nua. É diferente disso, sem dúvida, a posição de Deleuze, que sempre fez o elogio do devir-animal, que considera o animal o único ser que sabe morrer (para escândalo dos heideggerianos), que insiste que o próprio pensamento tem com a animalidade uma relação necessária – e na contramão de qualquer antropocentrismo ou controle, trata sempre de liberar a vida por toda parte onde ela esteja aprisionada, ainda que num reles animal, esvaziado de seus órgãos – corpo-sem-órgãos, uma vida.

Não cabe aqui escolher entre a franja messiânica que um pensador insiste em deixar entreaberta ou a ontoetologia em que o outro se instala de imediato. Em ambos os casos, é do vivo que se trata, sobretudo num contexto biopolítico em que se está imerso até o pescoço no pensamento-para-o-mercado (farinha, açucar e gesso), e Pompéia parece ser o único horizonte. É onde temos vergonha de ser um homem e quereríamos escapar, como que “por de-dentro”, virando-nos do avesso. Referindo-se às descrições de Primo Levi sobre o campo de concentração, e à vergonha de ser um homem que ele evocou, Deleuze escreve: “Não somos responsáveis pelas vítimas, mas diante das vítimas. E não há outro meio senão fazer como o animal (grunhir, fugir, escavar o chão com os pés, nitrir, entrar em convulsão) para escapar ao ignóbil: o pensamento mesmo está por vezes mais próximo do animal que morre, que de um homem vivo, mesmo democrata”[11].

Talvez essa questão só possa alcançar sua “altura” a partir do mais “elementar”, isto é, das vísceras, no espasmo. Em outros termos, os destinos da matéria viva e suas bifurcações por vir pedem uma sensibilidade outra, que atravesse as eras e os reinos, os gêneros e as espécies, numa aposta cosmopolítica onde cabe ao além-do-homem reafirmar o símio e ao filósofo, o porco. Ali, o morimbundo e o recém nascido se respondem mutuamente, assim como Deus e o rato.

Peter Pál Pelbart

[1] Clarice Lispector, “Bichos – I”, in A descoberta do mundo, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 517.

[2] Idem, p. 520.

[3] C. Lispector, “Perdoando Deus”, in A descoberta do mundo, op. cit., p. 484.

[4] José Gil, Monstros, Lisboa, Quetzal, 1994, pp 81-85

[5] Renata Huber, “Texto para Alfarrábio”, março de 2015.

[6] Gilles Deleuze, “A literatura e a vida”, in Crítica e clínica, Rio de Janeiro, ed. 34, 1997,

[7] C. Lispectos, “Bichos, Conclusão”, in A descoberta do mundo, p. 524.

[8] Idem, ibidem.

[9] C. Lispector, « Cinco relatos e um tema », in A descoberta do mundo, p. 326.

[10] Giorgio Agamben, L´Ouvert, de l´homme et de l´animal, Paris, Payot & Rivages, 2002.

[11] G. Deleuze, Conversações, Rio de Janeiro, Ed. 34, 1992.